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Antologias – Todos os Saramagos

Todos oos Saramagos

TODOS OS SARAMAGOS
Lino de Albergaria
2022

Ele faria 100 anos em 16 de novembro de 2022, e as páginas lusófonas celebram a escrita deste ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. O escritor português José Saramago é o homenageado desta coletânea de contos, em que 30 autores tomam emprestado seu estilo, cenários, personagens ou incluem ele mesmo na narrativa. Uma publicação para eternizar a data e reaproximar os leitores deste ícone dos livros em língua portuguesa, traduzidos em outras artes, como o cinema e o teatro.

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Antologias – 90 maluquinhos por Ziraldo

90 maluquinhos

90 MALUQUINHOS POR ZIRALDO
Lino de Albergaria
Organização EDRA
Melhoramentos
2022

Com a organização de EDRA, reunimos grandes cartunistas e escritores para celebrar a vida, a obra e a influência de um dos maiores e mais completos artistas da cultura brasileira.

Ziraldo é um artista de muita complexidade, pela imensidão de seu talento, pela sua produção profícua e pela diversidade das plataformas em que ele se expressou, em mais de 70 anos de carreira, e 90 anos de vida.

Reunindo craques do traço e do texto, aos quais somos imensamente gratos pela receptividade e colaboração, essa seleção de 90 cartunistas e escritores faz ecoar mais forte esta homenagem para podermos externar toda a nossa admiração ao mestre, em forma de livro.

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Adulto: O ano da copa

o ano da copa

O ANO DA COPA
Lino de Albergaria
2023

Oito personagens que não se conhecem vivem a Copa do Mundo em Belo Horizonte, desde a longa preparação da cidade para receber os jogos. Nosso selecionado vai caminhando para a final até cair na fatídica partida no Mineirão. Além de sete brasileiros envolvidos nessa jornada, um descendente de alemães se vê dividido entre duas pátrias. Há desde os que são fãs apaixonados do futebol aos que o criticam. Entre jovens e alguns mais velhos, paira a percepção de que também está em jogo a visão que o mundo terá de nós no futuro. O ano da Copa é uma ficção sobre como moradores de uma cidade, bem diferentes entre eles, acreditaram ou duvidaram de que a experiência daqueles dias levaria a uma transformação em suas vidas. O mundo estava aberto para abraçar o Brasil quando o sonho acalentado se tornou um pesadelo. Por quanto tempo esse momento ainda vai abalar nosso ânimo coletivo?

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Folha de São Paulo

Texto colaborativo para a Folha de São Paulo

O autógrafo impossível

Texto publicado na Folha de S. Paulo (Caderno Ilustríssima)
Rio de Janeiro, 1985

LINO DE ALBERGARIA
04/10/2015 03h15

Mineiro arraigado, houve momentos, em meus 30 anos de vida literária, em que deixei Belo Horizonte. A primeira vez para estudar editoração em Paris, onde morei entre 1978 e 1981. As outras cidades que me abrigaram foram São Paulo e Rio de Janeiro para trabalhar editando livros infantis e juvenis, entre os anos 1980 e 1990.

Nessas aventuras em outras terras, ao mesmo tempo em que sentia a nostalgia de Minas, tive alguns encontros fortuitos e, de certo modo, insólitos, com pessoas muito conhecidas. Nada que se compare a algumas relações profissionais que contribuíram para impulsionar meu conhecimento ou minha experiência. Por isso, persistem como flashes isolados no depósito desorganizado de minhas lembranças.

Em Paris, enquanto descobria o mundo e uma profissão, li pela primeira vez Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e tinha como livro de cabeceira a Poesia completa e prosa, de Carlos Drummond de Andrade, da Companhia José Aguilar Editora, em papel fino e encadernação de couro verde, com a assinatura do autor em tinta dourada na capa.

Um domingo, na região do bulevar Saint-Germain, reconheci brincando numa praça com um garotinho que podia ser seu neto, mas tinha ares de filho, o ator Klaus Kinski, cujas fotos estavam nas propagandas do metrô, caracterizado como Nosferatu, na versão de Werner Herzog, acabando de estrear nos cinemas. Estranhei que a primeira celebridade com que esbarrei na vida se associava a um impressionante vampiro, mas ali era uma criatura bastante prosaica.

Em São Paulo, anos depois, quase me assustei com o cidadão que se assentou ao meu lado no ônibus em plena luz do dia, mas próximo ao Cemitério da Consolação. É que tomei conhecimento de sua presença pelas unhas enormes e em forma de curva, algumas quebradas e cortadas. Era o ator e cineasta Zé do Caixão, lembrando o quanto me intrigam fantasmas e assombrações, com certeza uma herança dos velhos casos ouvidos na infância.

Mais tarde, no Rio, esgotada minha cota de vampiros, estava no correio de Copacabana para mandar algumas cartas para Belo Horizonte. Na véspera, tinha estado na casa de minha prima Consuelo Albergaria, estudiosa das obras de Guimarães Rosa e Cornélio Penna, e um de nossos assuntos tinha sido sobre os mineiros, escritores, que tinham se mudado para aquela cidade. Drummond, claro, fora mencionado.

Pois não era ele, à minha frente na fila? Magro e míope como na foto do livro, o livro que lamentei não ter comigo naquele momento. Seria a grande desculpa para nos falarmos, mas a situação e o temperamento do homem não ajudavam. Ele tinha nas mãos um formulário de telegrama, que escondeu ao perceber meu olhar indiscreto sobre o que ele havia escrito. Eram apenas votos de felicidades a propósito de algum casamento, algo tão trivial quanto Klaus Kinski brincando com o filho numa pracinha em Paris.

“Poeta!” – um homem gritou lá do começo da fila. Drummond não respondeu e parecia muito contrariado por ter sido identificado, com todos os olhos se dirigindo para sua figura tímida. O homem lhe ofereceu o lugar à sua frente e ele hesitou, não querendo furar fila. Finalmente, antes que mais alguém o abordasse, tomou coragem, aceitou a oferta, foi atendido e escapuliu, apressado, para a Avenida Copacabana.

E lá se foi, sumindo visualmente da minha vida, o autor da “Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte”, aquela que, segundo o poeta, sem carne por baixo do vestido, nunca foi deste mundo.

Se não possuo o autógrafo feito de próprio punho, ainda tenho a reprodução de sua assinatura no velho volume, a lombada gasta, as páginas já ficando amarelas.

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Revista Presença Pedagógica

Resenha publicada na Revista Presença Pedagógica de março/abril 2016, feita por Angela Leite de Souza sobre quatro títulos de Lino de Albergaria.

Presença 128
Biblioteca para crianças e jovens

Uma saga do outro mundo

ANGELA LEITE DE SOUZA
Escritora e ilustradora associada a Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ), Associação Brasileira de Ilustradores Profissionais (ABIPRO) e Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil (FNLIJ).

Se há uma coisa que o público de literatura juvenil adora é mistério. Aliás, o ser humano tem esse gosto pelo inexplicável, pelas coisas que ficam no limiar da realidade e costumam causar arrepios. Quem, há algumas gerações, não foi magnetizado pelas peripécias de Sherlock Holmes, Hercule Poirot ou Maigret? E qual leitor de tempos mais recentes não se deliciou com algumas obras da famosa coleção Vaga-lume, da editora Ática, atraído por títulos como Um cadáver ouve rádio ou O gênio do crime? A ficção científica, as histórias de terror, os vampiros e os fantasmas, seja em forma literária, seja no cinema, desde sempre povoam o imaginário da humanidade.

Sabedor dessa preferência universal e já de longa data sintonizado com os leitores jovens, Lino de Albergaria adentra bem à vontade o gênero com quatro livros, até certo ponto, independentes. E por que “até certo ponto”? Porque o autor põe em cena os mesmos personagens – uma turma de alunos, sua professora e o motorista da escola – vivendo quatro aventuras em sequência, nas quais a presença da magia é gradativamente maior. Quando se chega às linhas finais do último volume, a impressão é a de ter lido uma novela dividida em quatro grandes capítulos.

Com o estilo apurado de sempre, em que se associam humor, ironia e uma linguagem contemporânea, própria do público adolescente, Albergaria construiu as narrativas como um jogo de adivinhação (ou de xadrez) que enreda o leitor até o final. Mas, ao seguir a trilha das tão apreciadas histórias misteriosas, o escritor adiciona elementos inovadores. Tal e qual os feiticeiros, magos e videntes que contracenam com os protagonistas, ele coloca em seu caldeirão ingredientes da cultura e do fazer literários – aqui, pitadas de realismo fantástico, ali, nonsense à Lewis Carroll e, agora, generosas porções de contos de fadas – para criar a própria receita, de assinatura inconfundível.

Boas-vindas

Lino de Albergaria vem percorrendo uma longa estrada na literatura, em especial a juvenil. São cerca de 80 títulos, sempre de grande sucesso e que resultam em constantes idas a escolas de diversos pontos do Brasil para um diálogo “ao vivo” com seus leitores adolescentes.

Bem-vindos à Casa da Neblina, o livro que abre a série, começa o processo de sedução desse público a partir do título ambíguo. A princípio, trata-se apenas de uma inocente excursão de estudantes com sua professora até um parque ecológico, situado em uma cidade histórica. À semelhança dos textos teatrais, antes do primeiro capítulo é apresentada a lista dos personagens. Entre os 13 alunos (número também sugestivo) que participam do passeio, há vários pares de gêmeos. Dona Dolores, uma diretora animada o bastante para acompanhar a turma em todas as peripécias que aguardam o grupo, parte com ele em um velho ônibus, conduzido por Gumercindo. O motorista também será personagem de destaque nas tramas, seja por suas trapalhadas, seja pela afetividade que vai estabelecendo com os alunos.

Também outros personagens adultos terão participação importante no enredo: Cacilda Lampedusa, atriz e ex-colega de Dolores, Divino Milagres, o médico-alquimista, Genoveva, a dona da pousada Casa da Neblina, onde o grupo se hospeda, e sua ajudante Hildegardes. Não é preciso dizer que Albergaria escolhe os nomes a dedo, assim como fará nos livros seguintes, geralmente expondo o lado cômico, ridículo ou estranho de suas criaturas. E não há dúvida de que o ilustrador, Filipe Rocha, com seu traço caricatural, contribui definitivamente para dar leveza e graça a aventuras cheias de calafrios.

Outra forma que o autor encontra de criar hiatos na tensão da trama é fazer a turminha cantar canções folclóricas enquanto caminha. E, também, desde o primeiro título da coleção, introduz personagens animais – no caso, o “Pássaro dos Sonhos”, borboletas, joaninhas, um elefante, uma girafa e uma zebra –, cujo papel é, curiosamente, envolver a história numa atmosfera onírica.

Essa estranha dimensão entre sonho e realidade será o pano de fundo de toda a aventura. O sumiço de Naná, uma menina que vive no seu mundo de criação, desenhando, é o ponto de partida da trama. Daí por diante – vozes entreouvidas por alguns dos colegas, episódios que acontecem sob e sobre a superfície de um lago, comportamentos esquisitos de crianças e adultos – o clima de mistério segue ao longo de toda a narrativa. E, mesmo ao fechar o livro, muitas dúvidas permanecerão, talvez, na cabeça do leitor…

Maldição das trevas!

Esta é a frase sempre repetida por um dos personagens mirins, o Pimba, a cada novo passeio proposto pela incansável dona Dolores. A imaginação dos garotos corre solta no segundo livro da série – Na Serra das Lianas –, graças aos inúmeros ingredientes “sinistros” com que Lino de Albergaria recheia sua história: uma coruja agourenta, uma aluna sonâmbula, um hotel mal-assombrado, três velhinhas suspeitas, sapos e flores.

É justamente a partir de inocentes sempre-vivas que o autor dá à trama o toque de realidade. Por trás dos indecifráveis acontecimentos descobre-se, afinal, um criminoso contrabando dessa flor. Sempre temperando-a com nomes incomuns, cantigas do folclore e muita comicidade, Albergaria desenvolve dessa vez uma narrativa mais próxima da novela policial que a anterior. Ao mesmo tempo, já que tudo se passa num ambiente rural, aproveita também para abordar as curiosidades que existem na natureza e a culinária típica desse meio. A turminha de excursionistas se encanta com esse mundo e usa seus celulares para fotografá-lo, “como se estivessem num museu”. E ainda aprende a fazer pamonhas, que depois saboreiam com gosto. Suspense e diversão, eis, portanto, a receita dessa nova aventura.

Um lugar fora do tempo

O terceiro da série é A ilha do tempo perdido, título que remete a outras obras saborosas e, inevitavelmente, a Robinson Crusoé. Mas, se este foi um personagem em luta real pela sobrevivência, na nova história de Albergaria o espaço está principalmente reservado a experiências em outras dimensões. Agora, os alunos de dona Dolores empreendem viagem à ilha do título, que pertence a Coriolano, o avô de uma das participantes do grupo. Para dar um tom esotérico à história, na casa onde ficam hospedados trabalha uma cigana, figura às vezes furtiva, que joga tarô e tem papel decisivo no desenrolar do enredo. Como nos livros anteriores, fatos incompreensíveis começam a acontecer desde o início, como o aparecimento inusitado de algas escuras recobrindo toda a praia e impedindo a turminha de tomar banhos de mar. Dessa vez, araras e um mico são os animais que exercem na história o papel de pontuar o jogo de esconde-esconde desenvolvido por Lino.

Outro elemento-chave são as pitangas, que têm um efeito semelhante ao do famoso pó de pirlimpimpim, de Monteiro Lobato, ao proporcionar a quem as come maravilhosas aventuras. É o que descobrem alguns alunos que transgridem a proibição de Coriolano de se dirigirem a determinado local da ilha e enveredam pela mata, atraídos pelas árvores carregadas dessa fruta. Quanto mais degustam seu sabor exótico, mais querem saboreá-la. Até que as pitangueiras se fecham ao seu redor e eles passam a viver momentos surreais, entre as paredes mutantes de uma casa iluminada de azul. Lá se veem envolvidos em um mundo mágico, que é desvendado por um dos meninos, ao descobrir prateleiras recobertas de livros e ler, em um deles, a explicação: “Chamam de mundo do faz de conta, mas representa um lugar fora do tempo habitual. Nele vivemos as experiências mais empolgantes e extraordinárias.”

Nesse livro, Albergaria emprega o mesmo recurso eficiente, comum às novelas, que irá utilizar no quarto título da série, acirrando a curiosidade do leitor: em capítulos alternados, desenvolve duas tramas paralelas que, como na geometria, se encontram a certa altura.

Margaridas, lebres, tartarugas

O quarto livro, Chá das cinco, certamente é aquele em que o escritor mais deu asas a sua imaginação, alinhando-o, de um lado, com obras latino-americanas do realismo fantástico e, de outro, com Alice e seu país das maravilhas.

Nessa narrativa, as histórias paralelas se desenvolvem de modo ainda mais complexo que o do título anterior, aumentando de ritmo à medida que a trama se torna mais intrigante. Pela primeira vez, a diretora da escola delega ao motorista Gumercindo a responsabilidade de ciceronear a excursão da turma pelo Jardim das Margaridas, na própria cidade onde vivem. Não sem algum remorso, dona Dolores prefere atender ao convite da proprietária de um antiquário – Priscila Vetusta – para um chá na própria loja, às cinco da tarde.

Estranhamente, o convite exige que ela compareça às três horas, pontualmente. A diretora descobrirá mais tarde que só foi incluída entre as demais convidadas – Griselda Gadelha, Aldana Alvina e Maximiliana Monte – para completar o número cinco. E que a anfitriã não passa de uma bruxa, fielmente (mas não para sempre) atendida pelo mordomo Gudesteu.

É ele quem traz o tal chá, em um bule negro estampado de pequenas margaridas, e o serve em xícaras com forma de lebre, sobre pires imitando tartarugas. Esses animais têm, como nos livros anteriores, um papel importante a desempenhar na trama e são o elemento de ligação com os acontecimentos que se desenrolam em paralelo, no suposto Jardim das Margaridas. A bebida é um líquido amarelo bem aguado, que Dolores, diferentemente das outras convidadas, reluta em provar. Enquanto suas colegas voltam a ser crianças, a diretora, única a não ingerir todo o chá e a permanecer adulta, vai compreendendo o motivo de estar ali. Nesse meio tempo, o motorista trapalhão perde-se com as crianças no trajeto ao tal jardim e, simultaneamente ao que se passa no Raríssimo Antiquário, tem início uma complicada aventura, com contornos ora de sonho, ora de pesadelo. Os mistérios do chá se mesclam com os do passeio malogrado dos alunos, fornecendo pistas para uma possível solução.

Como sempre, não faltam canções a serem cantadas pelas crianças e seu desnorteado guia. Desta vez, “Onde está a margarida?” serve não apenas para aliviar o frisson provocado pelo enredo, mas, também, para sublinhar ou, até, antecipar o que nele acontece.

O fato é que Lino de Albergaria encerra com maestria o que poderíamos chamar de “uma saga de outro mundo”, já que é em uma dimensão desconhecida que transitam seus personagens. Sem dúvida, esse é o texto que mais revela a habilidade do autor para construir seus enredos, montando um verdadeiro quebra-cabeças com humor e inventividade. Um texto, como os precedentes, a ser lido com prazer até por leitores “grandinhos”, não só porque a forma é trabalhada com esmero, como porque o conteúdo, sutil ou explicitamente pontilhado de referências literárias, remete o adulto a suas primeiras – e inesquecíveis – leituras.

Bem-vindos à casa da neblina
Páginas: 63
Na Serra das Lianas
Páginas: 63
A ilha do tempo perdido
Páginas: 72
Chá das cinco
Páginas: 74
Autor: Lino de Albergaria
Atual Editora

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A Resposta

Por Lino de Albergaria – dezembro 2018

O texto aqui publicado, “A resposta”, de Lino de Albergaria, vem em continuidade à primeira parte, publicada em InComunidade, edição 51.

Na hora do almoço, Ana foi ao correio. Retirou da bolsa a carta que estava ali há uns quatro dias. Nunca tinha tido a certeza se queria mesmo mandá-la. No entanto, estava acabando de pagar pelo selo. Achou bonita a estampa, que não tinha escolhido. Deram-lhe aquele pássaro, que nem reconhecia. Sem óculos, não podia identificar o nome escrito ao lado do desenho, em tipo tão pequeno. Pensou em um pombo-correio, mesmo sabendo que a imagem não era a de um pombo. Colocou o envelope na abertura da parede que já separava a correspondência para outros estados. Ganhando a rua, caminhou entre a multidão da Afonso Pena. Do outro lado da pista, o Parque Municipal. Lembrou-se do parque da Avenida Paulista. Um painel anunciava uma exposição no Palácio das Artes. Sem refletir, atravessou a rua. Olhou a montanha, no final da avenida, que lhe lembrou em que cidade estava. Sabia que ia voltar atrasada ao trabalho, mas mesmo assim demorou-se bastante na exposição. Não eram pinturas excepcionais, mas poder caminhar entre aqueles quadros lhe trazia um agradável conforto.

Amaro Gaetano voltou à editora com o sono que costumava sentir depois do almoço. Ainda não tinham levado sua garrafa de café, auxílio indispensável para fugir àquela modorra. Amontoavam-se à sua mesa provas e originais dos paradidáticos de ciências, há alguns meses sua nova atribuição. Meio inusitado para um professor de geografia que não gostava da sala de aula e a princípio curtia mapas, de todos os tipos. Mas ali não faziam atlas nem enciclopédias, e começou como assistente dos didáticos de geografia. Até que apareceu a oportunidade dos paradidáticos, com uma gama mais ampla de assuntos e uma liberdade de criação maior do que os rígidos manuais escolares. Não entendia muito de plantas ou animais, confundia-se com a classificação das espécies, mas tinha aprendido a acompanhar a feitura dos livros. Admirava as ilustrações, fotos ou desenhos que procuravam imitar a natureza. E achou interessante se aventurar por outra área.

Distraiu-se, olhando a ilustração de uma galáxia em formação, sua favorita, que tinha pessoalmente colado na parede diante do móvel onde colocava a garrafa de café, na verdade uma antiga mesinha de telefone. Se ainda fumasse, um cigarro ajudaria naquele momento. Repetindo um gesto antigo, seus dedos tatearam o bolso do casaco à procura do maço. E encontraram o papel dobrado.

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Entrevista ao jornalista Carlos Herculano

8 de julho de 2019 by José Nunes

Lino concede entrevista ao jornalista Carlos Herculano em 8 de outubro de 2012

1-Em Em nome do filho, de 1985, você trata de temas tabus para a época, como o homossexualismo e a Aids. Qual é a leitura que você faz do livro hoje, quase 30 anos depois? Você acha que estes temas ainda continuam sendo tabus?

Creio que foi a primeira vez que o tema da Aids foi abordado numa obra literária entre nós e, embora tenham sido gerados um livro e um filme a partir do drama de Cazuza, não vejo a Aids, apesar de controlada hoje, como um tema ficcional corrente no Brasil. Mesmo o homossexualismo não costuma comparecer com frequência entre os assuntos principais de nossas letras. De 1985 para cá a sociedade se tornou mais tolerante, os homossexuais se mostram em grandes paradas, seguindo uma manifestação fortemente carnavalesca, mas são ainda personagens secundários ou caricatos nas obras para o grande público, como nas novelas da televisão. Apesar do avanço da legislação que permite a união entre pessoas do mesmo sexo, gays continuam sendo vítimas de crimes violentos por todo o país. Se homossexuais dos dois gêneros se destacam cada vez mais em todos os âmbitos profissionais, em muitos contextos ainda não devem se declarar como tal, como faz, tão livremente, o prefeito socialista de Paris. As pessoas soropositivas, em sua maior parte, também não se sentem confortáveis para debater sua situação publicamente. Posso afirmar que, embora a situação seja bastante diferente hoje, Aids e homossexualismo continuam tabus não só literários como também entre os temas tratados no próprio quotidiano da população, mesmo sem resvalar para a questão religiosa.

2- A mesma pergunta creio que vale para A estação das chuvas, no qual você fala de um triângulo amoroso e do envolvimento com drogas, provavelmente com o daime. Como foi para você escrever estes romances?

A estação das chuvas foi escrito no início dos anos 1990, quando, em consequência da expansão da liberação sexual das décadas anteriores, havia sido popularizada a expressão “amizade colorida” para representar relações afetivas fora de compromissos oficiais. Ao mesmo tempo, uma bebida amazônica que provocava experiências sensoriais tornava-se permitida, se consumida dentro dos rituais de seitas religiosas como o Santo Daime ou a União do Vegetal. Triângulos amorosos sempre foram temas de interesse da literatura ou do cinema, embora a relação vivida entre uma mulher e dois homens não fosse, e acho que ainda não é, a mais habitual. Escrever estes dois romances, navegando nas águas de uma época que me envolvia, foi, na verdade, um desafio para abordar conteúdos que transcendem qualquer atualidade. Nos dois livros, meus personagens se debruçam sobre o grande mistério da vida e a perplexidade humana ao tomar conhecimento dos muitos fatores que envolvem nossos relacionamentos, tanto os familiares quanto os amorosos. Foram também produzidos numa época de explosão das terapias, na sequência da psicanálise, em que uma boa parte de nós tentava se conhecer melhor.

3- Você é mais conhecido como autor infanto-juvenil. Qual é a diferença entre escrever para crianças e para adultos?

É uma questão de adequação de linguagem, embora essencialmente meu grande tema perpasse todos os meus livros, já que todos os heróis que costumo criar buscam a própria identidade. São as circunstâncias que provocam as histórias que determinam para quem eu vou escrever. Tenho um grande prazer em escrever para crianças e adolescentes, mas certas obras serão, naturalmente, de interesse maior de um adulto, quando posso me sentir sem maiores constrangimentos para tratar dessas questões consideradas tabus, por exemplo.

4- Vamos falar dos dois romances inéditos. Dá para adiantar o nome deles, quais são os temas tratados?

O título é sempre a última coisa que eu defino, e chego a mudar várias vezes. Os dois romances ainda não têm nomes definitivos e carecem de novas leituras e revisões de minha parte, embora tenham prontas as versões iniciais, um deles já mais perto da versão final. Este trata de um encontro numa livraria entre dois homens, um leitor e um livreiro. O vendedor de livros decide escrever uma história, uma ficção, enquanto observa seu cliente e o livro que ele está folheando. Sem que o outro perceba, o livreiro passa a manusear outro exemplar do mesmo livro, procurando adivinhar o interesse daquele homem por aquelas páginas. Assim, a realidade e a imaginação vão se misturando, e o livro que o personagem-leitor lê vai se tornando ele mesmo uma espécie de personagem, conduzindo todos os acontecimentos. O veio principal é a solidão, da qual nenhum de nós consegue fugir, e as maneiras que inventamos para contorná-la. O segundo livro é uma paródia ou um pastiche de outros livros, inicialmente de As mil e uma noites, e tudo se dá no espaço virtual. Há uma narradora que inventa outro nome e outra origem para ela, além de uma cidade e uma casa para que possa morar nelas, sempre buscando como referências plausíveis as imagens que encontra na internet. É assim que constrói uma vida alternativa para si mesma. É outra condição da época em que vivo – o vasto mundo das informações digitais – dando o norte de minha literatura.

5- Como começou a sua trajetória como escritor? E como é viver em Belo Horizonte e continuar fazendo literatura aqui?

Eu queria ser editor, como viria a ser por cerca de quinze anos, e estudava editoração em Paris, quando fui estagiar em uma revista para crianças e ali fui levado a pesquisar sobre literatura infantil, tendo depois trabalhado numa biblioteca para crianças e jovens, sendo impelido a ir passando da editoração para a criação dos textos. Comecei escrevendo para crianças menores, depois para adolescentes e num terceiro momento para leitores adultos. Viver em Belo Horizonte é poder ter um ambiente em que eu me reconheço e que se torna cenário de uma grande parte de minhas narrativas, possivelmente um vasto espelho que reflete minha aventura humana. Continuar fazendo literatura aqui é viver mais próximo do que eu já conheço, do que me provoca a escrever.

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Lino de Albergaria – 30 anos de Literatura

Acesse a Página do Facebook do Lino: Lino 30 anos

Trinta anos de literatura levam a pensar como um leitor se tornou autor e também como os dois (o que lê e o que escreve) continuam existindo. Nessas três décadas, Lino de Albergaria publicou mais de 80 livros, uns poucos para o público adulto, a maioria para o público juvenil.

Para que Lino de Albergaria publicasse suas primeiras histórias, aos 35 anos, houve uma longa preparação. Antes foi ouvinte de narrativas intrigantes lidas pela professora no final da aula ou dos discos de contos antigos comprados pelo pai, logo se deixando fascinar pelo oriente e a caverna de tesouros de Ali Babá, acessível pela senha mágica das palavras certas.

Desde que começou a ler, pegou a mania de levar para a cama as páginas de papel que se prendem pela beirada numa espécie de caixa, fácil de ser aberta e pronta a revelar surpresas em série até que os olhos se fechem e o sono venha.

O conteúdo dos livros foi também motivo de vários anos de estudo na área de Letras, da graduação ao doutorado. A concepção e a fabricação dos livros, o objeto que deve chegar ao leitor, foi razão de outros estudos e uma aventura na França, seguidos de mais alguns anos de prática profissional como editor, trabalhando em diferentes cidades.

Trinta anos e mais de oitenta livros levaram ao convívio com várias centenas de personagens, em tantos cenários de aparência real ou puramente imaginária, que continuam existindo no papel e agora em versão eletrônica, criando elos com quem os descobre e às vezes lhes reserva um pequeno lugar em sua memória.

Quem escreve quer ser lido. Ser reconhecido pelo leitor vale o esforço de uma vida. Os livros são um passaporte afetivo entre quem escreve e aqueles que o leem e decifram as intenções do escritor.

Tantos escreveram antes de Lino e continuarão, obviamente, a escrever depois dele, cada um cativando seus leitores a seu modo. Segue a história, com seus inumeráveis capítulos irrompendo uns dos outros, envolvendo os que sentirão o mesmo prazer e compromisso com a literatura, esse perplexo fingimento sobre a vida que torna o mundo mil e uma vezes mais interessante.

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Sua luz tão intensa, particularmente sedutora

Depoimento para o livro de Fabrício Marques “Uma cidade se inventa – Belo Horizonte na visão de seus escritores” (Editora Scriptum, 2015)

A rua de Lino Albergaria é a Fernandes Tourinho, não só porque mora nela, há 20 anos no mesmo prédio, mas também porque era onde residia sua família quando nasceu em 1950: numa casa que ainda existe, no número 962. “Tinha fotos (parece que perdi) na frente dessa casa, ainda um bebê com meus irmãos, primos e meu avô, que também perdi quando tinha 5 anos. Não tenho nenhuma lembrança de meu primeiro endereço”.

Quando sonha, a casa em que mora é na Rua Espírito Santo, no quarteirão da igreja Santo Antônio, onde passou a maior parte da infância e juventude. Hoje é um prédio, com uma loja de móveis no térreo. “Era uma casa de fachada moderna mas com quintal, chão de terra, árvores (abacateiro, jabuticabeira, mangueiras), uma família de pai, mãe, cinco filhos (eu o mais novo), sempre com cachorros e às vezes algumas galinhas. Até hoje nesse quarteirão há magnólias nas calçadas”.

Na esquina da Espírito Santo com a Contorno, onde era a Mercearia Maurício`s, que vendia picolés verdes com sabor de abacate, hoje existe um empório de comida árabe. A igreja continua no mesmo lugar, na esquina defronte, embora modificada por dentro. “Sinto falta dos quadros da Via-Sacra, contando uma história que me deixava curioso, com suas figuras em alto-relevo. Eu me lembro de ter visto pela primeira vez uma noiva entrando ali, um véu cobrindo o rosto. Era nossa vizinha, Isa, que eu não veria mais, já que ela se casou e mudou com o marido”.

Descendo a rua, há uma série de casas antigas e apertadas que ocupam o mesmo terreno, predecessoras de um prédio de apartamentos, quase na esquina com a Fernandes Tourinho, onde moravam várias famílias. As casinhas continuam lá, mas com uso comercial. Entre seus moradores lembra de dona Zita, que era vidente, e do professor Romanelli, espírita também, e que era professor de grego e latim e pesquisador do indo-europeu. “Havia também um maestro que morou naquelas casas, mas não tenho mais certeza do seu sobrenome. Acho que era Pedro Rocha. Eram as moradias mais baratas dos arredores, mas onde morava a gente mais interessante. Eu acreditava que cada uma dessas pessoas levava uma vida bastante significativa”.

Lino de Albergaria observa que, entre as décadas de 1980 e 1990, seus pais moraram na Fernandes Tourinho de novo. “Eu iria ser vizinho deles, pois me instalei no prédio onde moro (o 850), ao lado do edifício em que se instalaram (o 840). Nesse último endereço faleceram: primeiro, ele; mais tarde, ela. Meu pai, na verdade no Hospital Vera Cruz, mas minha mãe dormindo no seu próprio quarto”.

A rua se encheu de restaurantes, está mais barulhenta, mas continua sendo seu lugar no mundo. “Só estava esquecendo de dizer que fiz o ginásio e o clássico no Colégio Estadual, sempre entrando pelo portão da esquina da Fernandes Tourinho com a Rio de Janeiro. Eu podia ouvir de casa (embora todo esse tempo eu morasse na Espírito Santo) a sirene chamando para a primeira aula e às vezes tinha de correr para poder entrar antes que o portão fechasse”.

Aos 28 anos foi estudar editoração na França, depois foi trabalhar em São Paulo e no Rio, ficando doze anos ausente da cidade e desse trecho especial. “Quando voltava a Belo Horizonte, me surpreendia com sua luz, tão intensa, e que, no outono, me parece particularmente sedutora”.

Dos escritores mais emblemáticos, só manteve contato visual com Emílio Moura e Carlos Drummond de Andrade. “Com Drummond nem foi na cidade, mas no breve período em que morei no Rio. Ele estava na minha frente numa fila do Correio de Copacabana, com ares de quem não queria ser incomodado, pois um sujeito extrovertido o reconheceu e gritou alto seu nome. O poeta tinha ido prosaicamente enviar um telegrama para cumprimentar alguém pelo casamento. Atrás dele, eu bisbilhotei o que tinha escrito no formulário próprio para isso”.

Estudou Letras no prédio da Fafich, na Rua Carangola (prolongamento da Rua da Bahia, a bem poucos quarteirões da casa na Espírito Santo), e tinha uma colega, Rosa Giordano, com quem foi estudar umas poucas vezes. Ela era vizinha do Emílio Moura, um homem magro e de bigode, num prédio da Rua Pernambuco, nas imediações do Colégio Santo Antônio.

Ainda não tinha entrado no curso de Letras, era aluno do Estadual, quando, com seus colegas Solange Gonçalves e Ricardo Decat, dirigiu-se até aquele prédio para conhecer uma escritora que faria uma conferência para os universitários. “Não era mineira mas veio até aqui, no final dos anos 1960, e até hoje mantenho a impressão atordoante de sua presença, sobretudo o sotaque, com os erres tão arrastados, denunciando que tinha nascido na Ucrânia. Ainda tinha um rosto bonito, usava os cabelos curtos e tingidos de um louro escuro, mas numa das mãos eu podia ver a cicatriz de uma queimadura feia”. Clarice Lispector segurava um cigarro, pois fumava bastante. Lino ficou sabendo que a cicatriz tinha sido provocada justamente por um cigarro que incendiou seus lençóis e seu colchão, quando dormiu sem ter tido o cuidado de apagá-lo.

Mais ou menos na mesma época, talvez um pouco antes, foi com outro colega do Estadual, João Batista de Oliveira Filho, que estudava francês com ele na Aliança Francesa, ouvir Nathalie Sarraute, “uma velhinha de aspecto simples e simpático”, que era conhecida por ser um dos expoentes do nouveau roman francês e que viera a Belo Horizonte também para uma conferência.

Mais tarde se tornaria amigo dos filhos (Carlos, Mônica e Myriam) dos escritores Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, que foi a primeira pessoa a resenhar um livro seu, no jornal Estado de Minas. No curso de Letras, sua colega Madu Brandão (futura escritora) também era filha de escritor: Ildeu Brandão, que o presenteou com seu livro de contos Um míope no zoo. “Também fui vizinho, no apartamento da Rua Fernandes Tourinho, da irmã de Henriqueta Lisboa, a autora de livros infantis Alaíde Lisboa, que vivia dois prédios adiante, em direção à Rua da Bahia, local onde completaria seu centenário, extremamente carinhosa comigo, que tinha me tornado seu editor quando trabalhei na Editora Lê”.

Seu livro A estação das chuvas, reeditado pela Scriptum, começa no Parque Municipal e termina na Praça do Papa. O tema é um triângulo amoroso que acontece na cidade, entre as chuvas do verão. Um dos lados do triângulo é um historiador da cidade, que colhe anotações para um ensaio. Seu ponto de partida é o Parque, onde provisoriamente morou Aarão Reis, que projetava a cidade. O personagem é descendente de uma família do Curral del Rei, que teve seus habitantes expulsos de suas casas para a construção da nova capital de Minas. O texto passeia por algumas paisagens, como a Pampulha e a serra do Curral, mas se detém bastante no centro, especialmente na Avenida Afonso Pena, por tantos anos o eixo vibrante da cidade.

Lino tem outros dois romances pela Scriptum, que também apresentam suas tramas situadas no lugar onde nasceu e vive. Um deles, O bailarino holandês , se passa no Palácio das Artes, entre a livraria e o Grande Teatro. Na livraria, o vendedor vê um cliente manuseando um álbum de fotografias de Belo Horizonte. Disfarçadamente, ele abre outro exemplar enquanto observa o interesse do cliente por certas ruas e construções. Na medida em que imita a leitura do outro, vai imaginando um personagem para um livro que escreve mentalmente, seguindo o homem que lê à sua frente por um trajeto que os locais fotografados evocam. “Só não pode supor que aquele indivíduo tem uma vida própria, em nada parecida com a que foi fantasiada para ele e que, no recinto do teatro, enquanto uma companhia holandesa dança uma música de Tom Jobim, Insensatez, o leitor e o jovem livreiro cruzarão efetivamente seus caminhos”.

No outro livro, Os 31 dias, uma mulher passa um mês num sítio que lhe foi emprestado e se propõe a escrever um livro nesse período de tempo. Com um computador e a internet, cria um cenário de aparência real para que possa simular uma existência paralela. “É assim que, pelo anúncio de uma imobiliária, descobre um apartamento para alugar na Praça Marília de Dirceu (simpatiza com o nome do local, ao descobrir que o nome oficial do lugar é Praça João Alves, o que proporciona uma identidade dúbia para o próprio espaço), e instala-se virtualmente naquele lugar onde inventa um passado e depois um presente para si mesma. São fotos do passado e do presente de Belo Horizonte que compõem a insólita ambientação de um mudo ficcional em uma cidade concreta, ainda recente na idade, mas constantemente transformada pelo tempo”.

CITAÇÃO
(…)
Ao reconhecer que Belo Horizonte existe desde muito antes do dia 12 de dezembro de 1897, data oficial de sua inauguração, não quero agir como um curralense ressentido, expulso da festa. Pretendo escavar a origem de tudo, fazer uma espécie de arqueologia, homenagem muito pessoal a Anne-Marie, encontrando raízes subestimadas, fotografando a aura que se disfarça entre nossos prédios e nossas ruas. Por isso não considero seus primeiros habitantes nem os funcionários públicos transferidos de Ouro Preto para formar a elite e a camada média desta cidade, nem os pedreiros brasileiros que se juntaram aos italianos mais eficientes e também brigões, beberrões e anarquistas.
(…)
(Lino de Albergaria. A estação das chuvas, 2012).

CITAÇÃO
(…)
A casa da minha infância já posso desmanchar, retirá-la da Rua Antônio Aleixo e devolvê-la para seu lugar original, de onde me disponho a espiá-la, obliquamente, de minha varanda. A Praça Marília de Dirceu permanece despovoada, sem outra alma viva além da minha, mas naquela casa há uma luz acesa. Mesmo que venha da tela de uma televisão que alguém esqueceu ligada.
(…)
(Lino de Albergaria. Os 31 dias, 2015).

CITAÇÃO
(…)
Dentro da noite belo-horizontina, procuro o Palácio das Artes. Um navio branco ancorado no mar escuro do Parque Municipal. Ele não pode partir. Não quero ouvir a sirene anunciando sua despedida. Nem quero vê-lo, da calçada da avenida Afonso Pena, lentamente se afastar, tragado pelas árvores, transformadas numa sombra confusa, aquosa.
(…)
(Lino de Albergaria. Um bailarino holandês, 2015).

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Lino de Albergaria: sobre minha literatura e minha pessoa

Escrever literatura, eu descobri, não é tão diferente de escrever uma carta. Cada livro não passa de um pedaço de uma única carta, por mais longa que possa se tornar. Uma nova palavra acrescentada a esse texto, por enquanto sem fim, quer, mais do que tudo, sustentar a atenção do leitor. Ser lido é se saber escutado.

Acredito que, antes de mais nada, todo autor é um leitor. Sem dúvida, o leitor constrói o autor. Uma frase atribuída a Flaubert, “Madame Bovary, c’est moi”, cuja autenticidade até hoje se discute, com diversas tentativas de interpretação, para mim significaria, em última instância: “assim como minha personagem Emma Bovary, sou um leitor.”

Para alguns, Flaubert estaria se defendendo do processo a que foi submetido por atentar contra a moral e os bons costumes do século XIX. A grande dose de realismo que aplicou a seu romance teria feito com que muitos leitores acreditassem que falava de uma dama, adúltera, de existência real. No entanto, tudo era ficção, fruto da imaginação do autor. Mas Emma Bovary, leitora de obras românticas, teceu sua tragédia por acreditar em suas leituras.

A biografia de Flaubert mostra que ele também era um exagerado leitor, ainda no liceu de Rouen, nunca abandonando seus romances, companhia constante no dormitório. O vício, que emprestou a Emma, não o deixou nem quando escreveu “Bouvard e Pécuchet”. Para escrever esse livro, teria lido mais de mil volumes…

Nosso José de Alencar, em sua autobiografia “Como e porque sou romancista”, enfatiza a leitura tanto no ambiente escolar, evocando seu mestre Januário Mateus Ferreira, quanto nos serões de família, quando, à maneira de Flaubert e Emma Bovary, gravava no espírito um escasso repertório de romances.

Escreveu Alencar, relembrando a juventude: “Era eu quem lia para minha boa mãe não somente as cartas e os jornais, como os volumes de uma diminuta livraria romântica formada ao gosto do tempo (…). Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava-se à leitura e eu era chamado ao lugar de honra”. E ele se perguntava: “Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária que é entre todas a de minha predileção?” (ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas: Pontes, 1990).

Não fui nem sou um leitor tão compulsivo nem o gosto pelos livros prejudicou meu destino como aconteceu à pobre Bovary. Lembro-me que era analfabeto ainda, mas gostava de ouvir histórias, não só na voz humana como em gravações em discos coloridos, destinados às crianças de minha geração. Meu disco favorito contava a história de “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”. Ouvia muitas vezes a longa história, que ocupava dois discos. Mas não eram as peripécias do mercador oriental que me encantavam. Ficava imaginando a caverna de tesouros e a senha para que ela, magicamente, os revelasse: “Abre-te, sésamo!”.

Existia um cômodo em minha casa, ou de minha família, que era o escritório e a biblioteca de meu pai. Não tinha janelas e as paredes eram cheias de livros, que eu não podia ler porque ainda não sabia. Era escuro, uterino e misterioso como a caverna da história de Ali Babá. As figuras me espiavam das capas, o papel se entregava à exploração das minha mãos, quando, sozinho, entrava naquele cômodo vazio e que tanto me atraía. Talvez os livros me piscassem os olhos, fazendo de conta que eram os tesouros a forrar as paredes do lugar encantado que uma voz, para mim anônima, descrevia nos discos.

Um dia não me contive, peguei um lápis na escrivaninha, um lápis de duas pontas, uma azul e outra vermelha, abri um livro e rabisquei outro sobre ele. Tentava contar uma história por meio de desenhos, com bonecos humanos e bichos, em vermelho e azul. Estava, aos três anos, criando meu primeiro livro, minha versão pessoal de um palimpsesto. Minha mãe achou interessante, colocou a data. Trinta anos depois me daria de presente.

Nesse período, fui à escola, decifrei os códigos da leitura e da escrita, me tomei de paixão pela literatura, o que me fez estudar Letras e me levou à França para estudar editoração, pois queria trabalhar com livros, aprender a fabricá-los. Lá, entrei em contato com a literatura infantil, fiz estágios em revistas e em uma biblioteca para crianças. Na verdade, minha aproximação com o gênero foi por acaso, pois foram aqueles lugares e as pessoas que trabalhavam ali as únicas que me aceitaram como estagiário.

Na volta, exerci minha profissão de editor em São Paulo, no Rio de Janeiro e, finalmente, em Belo Horizonte, retornando à minha cidade natal, ao mesmo tempo em que publicava meus primeiros livros, dedicados aos jovens leitores.

Como autor de livros para crianças e jovens, passei a ser convidado para palestras e conversas com os leitores, no próprio ambiente da escola. Foi quando tive a chance de confrontar meus leitores. Descobri que não escrevo para mim mesmo, nem por um impulso incontrolável. Escrevo para pessoas de carne e osso, que podem conversar comigo e se fazer ouvir. Muitos autores, nessa área, não gostam de visitar escolas. Eu sempre tenho uma grande curiosidade pelo que pode se passar ali e, confesso, um gosto por esses encontros. Aprendi a levar em conta a opinião de alguns leitores. Às vezes, expressam uma sabedoria que não encontrei nas minhas leituras e me vejo a incorporá-las em meus livros e no meu modo de escrever.

Assim, as escolas passaram a ser cenário de minhas histórias, quando adoto o realismo em minha literatura. Crio personagens próximos de meus leitores, que passam boa parte do seu tempo na escola. Também gosto de representar a família: pais, irmãos, avós, que contracenam com colegas e professores de meus heróis, de preferência pré-adolescentes. Ali, na escola ou na própria casa, eles atuam e se relacionam com o outro. Vivem conflitos, descobrem a vida, com obstáculos e sofrimentos ou alegria e esperança. Para as crianças menores, faço questão de um final feliz. Elas mesmas cobram esse final, que a maior parte dos contos de fadas incorporou. Final feliz é promessa de futuro, é esperança e confiança em nossos projetos na vida. A esperança o justifica.

Mas também crio histórias em um tempo fora do real, como o tempo suspenso dos contos de fadas. Aí minha imaginação se solta, perseguindo imagens que o inconsciente sugere. Essas histórias fantásticas, cheias de peripécias, são meu tributo ao meu primeiro herói, Ali Babá.

De um certo tempo para cá, entendi que escrever para um público jovem tem algo parecido com o ato de escrever uma carta: nas cartas a gente tem em mente nosso interlocutor e, para chamar sua atenção, nos aproximamos de sua linguagem e de seu interesse. Não é que o leitor deve dar, sozinho, o tom do jogo, mas a gente se torna mais motivado a falar daquilo que quer, se já sabe como corresponder à expectativa do destinatário. E não se trata de manipulação, pois incorporar o que se ouviu dele na nossa maneira de escrever torna-se, de alguma maneira, uma espécie de diálogo.

Também gosto de ler meus leitores. Não só os que me descobrem e me escrevem pessoalmente, mas desde que comecei a ter acesso à Internet passei a descobrir que há pessoas que falam de mim e do que escrevo, sobretudo, em seus diários eletrônicos, seus blogs. Freqüentemente tento me comunicar com eles, mas nem sempre faço isso. Há quem não acredita que o autor do livro que comentaram esteja se manifestando pessoalmente (ou virtualmente). Aliás, uma vez, alguém com meu nome escrevia para o autor do blog. Como muitos escritores dialogavam bastante com esse jovem, achei que eu e os outros já éramos personagens criados por ele próprio. Não me importei de ter virado um outro. Afinal, tudo é ficção, tudo é narrativa, quando se torna mediado pela escrita.

Então, como posso ser meus leitores, eles podem ser, de certa forma, eu mesmo. Enfim, todos somos Madame Bovary, fingindo, como Pessoa, ser dor a dor que deveras sentimos. Nosso dilema, também nosso prazer comum, é que pertencemos todos à mesma classe dos leitores!