Depoimento para o livro de Fabrício Marques “Uma cidade se inventa – Belo Horizonte na visão de seus escritores” (Editora Scriptum, 2015)
A rua de Lino Albergaria é a Fernandes Tourinho, não só porque mora nela, há 20 anos no mesmo prédio, mas também porque era onde residia sua família quando nasceu em 1950: numa casa que ainda existe, no número 962. “Tinha fotos (parece que perdi) na frente dessa casa, ainda um bebê com meus irmãos, primos e meu avô, que também perdi quando tinha 5 anos. Não tenho nenhuma lembrança de meu primeiro endereço”.
Quando sonha, a casa em que mora é na Rua Espírito Santo, no quarteirão da igreja Santo Antônio, onde passou a maior parte da infância e juventude. Hoje é um prédio, com uma loja de móveis no térreo. “Era uma casa de fachada moderna mas com quintal, chão de terra, árvores (abacateiro, jabuticabeira, mangueiras), uma família de pai, mãe, cinco filhos (eu o mais novo), sempre com cachorros e às vezes algumas galinhas. Até hoje nesse quarteirão há magnólias nas calçadas”.
Na esquina da Espírito Santo com a Contorno, onde era a Mercearia Maurício`s, que vendia picolés verdes com sabor de abacate, hoje existe um empório de comida árabe. A igreja continua no mesmo lugar, na esquina defronte, embora modificada por dentro. “Sinto falta dos quadros da Via-Sacra, contando uma história que me deixava curioso, com suas figuras em alto-relevo. Eu me lembro de ter visto pela primeira vez uma noiva entrando ali, um véu cobrindo o rosto. Era nossa vizinha, Isa, que eu não veria mais, já que ela se casou e mudou com o marido”.
Descendo a rua, há uma série de casas antigas e apertadas que ocupam o mesmo terreno, predecessoras de um prédio de apartamentos, quase na esquina com a Fernandes Tourinho, onde moravam várias famílias. As casinhas continuam lá, mas com uso comercial. Entre seus moradores lembra de dona Zita, que era vidente, e do professor Romanelli, espírita também, e que era professor de grego e latim e pesquisador do indo-europeu. “Havia também um maestro que morou naquelas casas, mas não tenho mais certeza do seu sobrenome. Acho que era Pedro Rocha. Eram as moradias mais baratas dos arredores, mas onde morava a gente mais interessante. Eu acreditava que cada uma dessas pessoas levava uma vida bastante significativa”.
Lino de Albergaria observa que, entre as décadas de 1980 e 1990, seus pais moraram na Fernandes Tourinho de novo. “Eu iria ser vizinho deles, pois me instalei no prédio onde moro (o 850), ao lado do edifício em que se instalaram (o 840). Nesse último endereço faleceram: primeiro, ele; mais tarde, ela. Meu pai, na verdade no Hospital Vera Cruz, mas minha mãe dormindo no seu próprio quarto”.
A rua se encheu de restaurantes, está mais barulhenta, mas continua sendo seu lugar no mundo. “Só estava esquecendo de dizer que fiz o ginásio e o clássico no Colégio Estadual, sempre entrando pelo portão da esquina da Fernandes Tourinho com a Rio de Janeiro. Eu podia ouvir de casa (embora todo esse tempo eu morasse na Espírito Santo) a sirene chamando para a primeira aula e às vezes tinha de correr para poder entrar antes que o portão fechasse”.
Aos 28 anos foi estudar editoração na França, depois foi trabalhar em São Paulo e no Rio, ficando doze anos ausente da cidade e desse trecho especial. “Quando voltava a Belo Horizonte, me surpreendia com sua luz, tão intensa, e que, no outono, me parece particularmente sedutora”.
Dos escritores mais emblemáticos, só manteve contato visual com Emílio Moura e Carlos Drummond de Andrade. “Com Drummond nem foi na cidade, mas no breve período em que morei no Rio. Ele estava na minha frente numa fila do Correio de Copacabana, com ares de quem não queria ser incomodado, pois um sujeito extrovertido o reconheceu e gritou alto seu nome. O poeta tinha ido prosaicamente enviar um telegrama para cumprimentar alguém pelo casamento. Atrás dele, eu bisbilhotei o que tinha escrito no formulário próprio para isso”.
Estudou Letras no prédio da Fafich, na Rua Carangola (prolongamento da Rua da Bahia, a bem poucos quarteirões da casa na Espírito Santo), e tinha uma colega, Rosa Giordano, com quem foi estudar umas poucas vezes. Ela era vizinha do Emílio Moura, um homem magro e de bigode, num prédio da Rua Pernambuco, nas imediações do Colégio Santo Antônio.
Ainda não tinha entrado no curso de Letras, era aluno do Estadual, quando, com seus colegas Solange Gonçalves e Ricardo Decat, dirigiu-se até aquele prédio para conhecer uma escritora que faria uma conferência para os universitários. “Não era mineira mas veio até aqui, no final dos anos 1960, e até hoje mantenho a impressão atordoante de sua presença, sobretudo o sotaque, com os erres tão arrastados, denunciando que tinha nascido na Ucrânia. Ainda tinha um rosto bonito, usava os cabelos curtos e tingidos de um louro escuro, mas numa das mãos eu podia ver a cicatriz de uma queimadura feia”. Clarice Lispector segurava um cigarro, pois fumava bastante. Lino ficou sabendo que a cicatriz tinha sido provocada justamente por um cigarro que incendiou seus lençóis e seu colchão, quando dormiu sem ter tido o cuidado de apagá-lo.
Mais ou menos na mesma época, talvez um pouco antes, foi com outro colega do Estadual, João Batista de Oliveira Filho, que estudava francês com ele na Aliança Francesa, ouvir Nathalie Sarraute, “uma velhinha de aspecto simples e simpático”, que era conhecida por ser um dos expoentes do nouveau roman francês e que viera a Belo Horizonte também para uma conferência.
Mais tarde se tornaria amigo dos filhos (Carlos, Mônica e Myriam) dos escritores Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, que foi a primeira pessoa a resenhar um livro seu, no jornal Estado de Minas. No curso de Letras, sua colega Madu Brandão (futura escritora) também era filha de escritor: Ildeu Brandão, que o presenteou com seu livro de contos Um míope no zoo. “Também fui vizinho, no apartamento da Rua Fernandes Tourinho, da irmã de Henriqueta Lisboa, a autora de livros infantis Alaíde Lisboa, que vivia dois prédios adiante, em direção à Rua da Bahia, local onde completaria seu centenário, extremamente carinhosa comigo, que tinha me tornado seu editor quando trabalhei na Editora Lê”.
Seu livro A estação das chuvas, reeditado pela Scriptum, começa no Parque Municipal e termina na Praça do Papa. O tema é um triângulo amoroso que acontece na cidade, entre as chuvas do verão. Um dos lados do triângulo é um historiador da cidade, que colhe anotações para um ensaio. Seu ponto de partida é o Parque, onde provisoriamente morou Aarão Reis, que projetava a cidade. O personagem é descendente de uma família do Curral del Rei, que teve seus habitantes expulsos de suas casas para a construção da nova capital de Minas. O texto passeia por algumas paisagens, como a Pampulha e a serra do Curral, mas se detém bastante no centro, especialmente na Avenida Afonso Pena, por tantos anos o eixo vibrante da cidade.
Lino tem outros dois romances pela Scriptum, que também apresentam suas tramas situadas no lugar onde nasceu e vive. Um deles, O bailarino holandês , se passa no Palácio das Artes, entre a livraria e o Grande Teatro. Na livraria, o vendedor vê um cliente manuseando um álbum de fotografias de Belo Horizonte. Disfarçadamente, ele abre outro exemplar enquanto observa o interesse do cliente por certas ruas e construções. Na medida em que imita a leitura do outro, vai imaginando um personagem para um livro que escreve mentalmente, seguindo o homem que lê à sua frente por um trajeto que os locais fotografados evocam. “Só não pode supor que aquele indivíduo tem uma vida própria, em nada parecida com a que foi fantasiada para ele e que, no recinto do teatro, enquanto uma companhia holandesa dança uma música de Tom Jobim, Insensatez, o leitor e o jovem livreiro cruzarão efetivamente seus caminhos”.
No outro livro, Os 31 dias, uma mulher passa um mês num sítio que lhe foi emprestado e se propõe a escrever um livro nesse período de tempo. Com um computador e a internet, cria um cenário de aparência real para que possa simular uma existência paralela. “É assim que, pelo anúncio de uma imobiliária, descobre um apartamento para alugar na Praça Marília de Dirceu (simpatiza com o nome do local, ao descobrir que o nome oficial do lugar é Praça João Alves, o que proporciona uma identidade dúbia para o próprio espaço), e instala-se virtualmente naquele lugar onde inventa um passado e depois um presente para si mesma. São fotos do passado e do presente de Belo Horizonte que compõem a insólita ambientação de um mudo ficcional em uma cidade concreta, ainda recente na idade, mas constantemente transformada pelo tempo”.
CITAÇÃO
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Ao reconhecer que Belo Horizonte existe desde muito antes do dia 12 de dezembro de 1897, data oficial de sua inauguração, não quero agir como um curralense ressentido, expulso da festa. Pretendo escavar a origem de tudo, fazer uma espécie de arqueologia, homenagem muito pessoal a Anne-Marie, encontrando raízes subestimadas, fotografando a aura que se disfarça entre nossos prédios e nossas ruas. Por isso não considero seus primeiros habitantes nem os funcionários públicos transferidos de Ouro Preto para formar a elite e a camada média desta cidade, nem os pedreiros brasileiros que se juntaram aos italianos mais eficientes e também brigões, beberrões e anarquistas.
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(Lino de Albergaria. A estação das chuvas, 2012).
CITAÇÃO
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A casa da minha infância já posso desmanchar, retirá-la da Rua Antônio Aleixo e devolvê-la para seu lugar original, de onde me disponho a espiá-la, obliquamente, de minha varanda. A Praça Marília de Dirceu permanece despovoada, sem outra alma viva além da minha, mas naquela casa há uma luz acesa. Mesmo que venha da tela de uma televisão que alguém esqueceu ligada.
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(Lino de Albergaria. Os 31 dias, 2015).
CITAÇÃO
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Dentro da noite belo-horizontina, procuro o Palácio das Artes. Um navio branco ancorado no mar escuro do Parque Municipal. Ele não pode partir. Não quero ouvir a sirene anunciando sua despedida. Nem quero vê-lo, da calçada da avenida Afonso Pena, lentamente se afastar, tragado pelas árvores, transformadas numa sombra confusa, aquosa.
(…)
(Lino de Albergaria. Um bailarino holandês, 2015).