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Lino de Albergaria – 30 anos de Literatura

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Trinta anos de literatura levam a pensar como um leitor se tornou autor e também como os dois (o que lê e o que escreve) continuam existindo. Nessas três décadas, Lino de Albergaria publicou mais de 80 livros, uns poucos para o público adulto, a maioria para o público juvenil.

Para que Lino de Albergaria publicasse suas primeiras histórias, aos 35 anos, houve uma longa preparação. Antes foi ouvinte de narrativas intrigantes lidas pela professora no final da aula ou dos discos de contos antigos comprados pelo pai, logo se deixando fascinar pelo oriente e a caverna de tesouros de Ali Babá, acessível pela senha mágica das palavras certas.

Desde que começou a ler, pegou a mania de levar para a cama as páginas de papel que se prendem pela beirada numa espécie de caixa, fácil de ser aberta e pronta a revelar surpresas em série até que os olhos se fechem e o sono venha.

O conteúdo dos livros foi também motivo de vários anos de estudo na área de Letras, da graduação ao doutorado. A concepção e a fabricação dos livros, o objeto que deve chegar ao leitor, foi razão de outros estudos e uma aventura na França, seguidos de mais alguns anos de prática profissional como editor, trabalhando em diferentes cidades.

Trinta anos e mais de oitenta livros levaram ao convívio com várias centenas de personagens, em tantos cenários de aparência real ou puramente imaginária, que continuam existindo no papel e agora em versão eletrônica, criando elos com quem os descobre e às vezes lhes reserva um pequeno lugar em sua memória.

Quem escreve quer ser lido. Ser reconhecido pelo leitor vale o esforço de uma vida. Os livros são um passaporte afetivo entre quem escreve e aqueles que o leem e decifram as intenções do escritor.

Tantos escreveram antes de Lino e continuarão, obviamente, a escrever depois dele, cada um cativando seus leitores a seu modo. Segue a história, com seus inumeráveis capítulos irrompendo uns dos outros, envolvendo os que sentirão o mesmo prazer e compromisso com a literatura, esse perplexo fingimento sobre a vida que torna o mundo mil e uma vezes mais interessante.

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Sua luz tão intensa, particularmente sedutora

Depoimento para o livro de Fabrício Marques “Uma cidade se inventa – Belo Horizonte na visão de seus escritores” (Editora Scriptum, 2015)

A rua de Lino Albergaria é a Fernandes Tourinho, não só porque mora nela, há 20 anos no mesmo prédio, mas também porque era onde residia sua família quando nasceu em 1950: numa casa que ainda existe, no número 962. “Tinha fotos (parece que perdi) na frente dessa casa, ainda um bebê com meus irmãos, primos e meu avô, que também perdi quando tinha 5 anos. Não tenho nenhuma lembrança de meu primeiro endereço”.

Quando sonha, a casa em que mora é na Rua Espírito Santo, no quarteirão da igreja Santo Antônio, onde passou a maior parte da infância e juventude. Hoje é um prédio, com uma loja de móveis no térreo. “Era uma casa de fachada moderna mas com quintal, chão de terra, árvores (abacateiro, jabuticabeira, mangueiras), uma família de pai, mãe, cinco filhos (eu o mais novo), sempre com cachorros e às vezes algumas galinhas. Até hoje nesse quarteirão há magnólias nas calçadas”.

Na esquina da Espírito Santo com a Contorno, onde era a Mercearia Maurício`s, que vendia picolés verdes com sabor de abacate, hoje existe um empório de comida árabe. A igreja continua no mesmo lugar, na esquina defronte, embora modificada por dentro. “Sinto falta dos quadros da Via-Sacra, contando uma história que me deixava curioso, com suas figuras em alto-relevo. Eu me lembro de ter visto pela primeira vez uma noiva entrando ali, um véu cobrindo o rosto. Era nossa vizinha, Isa, que eu não veria mais, já que ela se casou e mudou com o marido”.

Descendo a rua, há uma série de casas antigas e apertadas que ocupam o mesmo terreno, predecessoras de um prédio de apartamentos, quase na esquina com a Fernandes Tourinho, onde moravam várias famílias. As casinhas continuam lá, mas com uso comercial. Entre seus moradores lembra de dona Zita, que era vidente, e do professor Romanelli, espírita também, e que era professor de grego e latim e pesquisador do indo-europeu. “Havia também um maestro que morou naquelas casas, mas não tenho mais certeza do seu sobrenome. Acho que era Pedro Rocha. Eram as moradias mais baratas dos arredores, mas onde morava a gente mais interessante. Eu acreditava que cada uma dessas pessoas levava uma vida bastante significativa”.

Lino de Albergaria observa que, entre as décadas de 1980 e 1990, seus pais moraram na Fernandes Tourinho de novo. “Eu iria ser vizinho deles, pois me instalei no prédio onde moro (o 850), ao lado do edifício em que se instalaram (o 840). Nesse último endereço faleceram: primeiro, ele; mais tarde, ela. Meu pai, na verdade no Hospital Vera Cruz, mas minha mãe dormindo no seu próprio quarto”.

A rua se encheu de restaurantes, está mais barulhenta, mas continua sendo seu lugar no mundo. “Só estava esquecendo de dizer que fiz o ginásio e o clássico no Colégio Estadual, sempre entrando pelo portão da esquina da Fernandes Tourinho com a Rio de Janeiro. Eu podia ouvir de casa (embora todo esse tempo eu morasse na Espírito Santo) a sirene chamando para a primeira aula e às vezes tinha de correr para poder entrar antes que o portão fechasse”.

Aos 28 anos foi estudar editoração na França, depois foi trabalhar em São Paulo e no Rio, ficando doze anos ausente da cidade e desse trecho especial. “Quando voltava a Belo Horizonte, me surpreendia com sua luz, tão intensa, e que, no outono, me parece particularmente sedutora”.

Dos escritores mais emblemáticos, só manteve contato visual com Emílio Moura e Carlos Drummond de Andrade. “Com Drummond nem foi na cidade, mas no breve período em que morei no Rio. Ele estava na minha frente numa fila do Correio de Copacabana, com ares de quem não queria ser incomodado, pois um sujeito extrovertido o reconheceu e gritou alto seu nome. O poeta tinha ido prosaicamente enviar um telegrama para cumprimentar alguém pelo casamento. Atrás dele, eu bisbilhotei o que tinha escrito no formulário próprio para isso”.

Estudou Letras no prédio da Fafich, na Rua Carangola (prolongamento da Rua da Bahia, a bem poucos quarteirões da casa na Espírito Santo), e tinha uma colega, Rosa Giordano, com quem foi estudar umas poucas vezes. Ela era vizinha do Emílio Moura, um homem magro e de bigode, num prédio da Rua Pernambuco, nas imediações do Colégio Santo Antônio.

Ainda não tinha entrado no curso de Letras, era aluno do Estadual, quando, com seus colegas Solange Gonçalves e Ricardo Decat, dirigiu-se até aquele prédio para conhecer uma escritora que faria uma conferência para os universitários. “Não era mineira mas veio até aqui, no final dos anos 1960, e até hoje mantenho a impressão atordoante de sua presença, sobretudo o sotaque, com os erres tão arrastados, denunciando que tinha nascido na Ucrânia. Ainda tinha um rosto bonito, usava os cabelos curtos e tingidos de um louro escuro, mas numa das mãos eu podia ver a cicatriz de uma queimadura feia”. Clarice Lispector segurava um cigarro, pois fumava bastante. Lino ficou sabendo que a cicatriz tinha sido provocada justamente por um cigarro que incendiou seus lençóis e seu colchão, quando dormiu sem ter tido o cuidado de apagá-lo.

Mais ou menos na mesma época, talvez um pouco antes, foi com outro colega do Estadual, João Batista de Oliveira Filho, que estudava francês com ele na Aliança Francesa, ouvir Nathalie Sarraute, “uma velhinha de aspecto simples e simpático”, que era conhecida por ser um dos expoentes do nouveau roman francês e que viera a Belo Horizonte também para uma conferência.

Mais tarde se tornaria amigo dos filhos (Carlos, Mônica e Myriam) dos escritores Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo, que foi a primeira pessoa a resenhar um livro seu, no jornal Estado de Minas. No curso de Letras, sua colega Madu Brandão (futura escritora) também era filha de escritor: Ildeu Brandão, que o presenteou com seu livro de contos Um míope no zoo. “Também fui vizinho, no apartamento da Rua Fernandes Tourinho, da irmã de Henriqueta Lisboa, a autora de livros infantis Alaíde Lisboa, que vivia dois prédios adiante, em direção à Rua da Bahia, local onde completaria seu centenário, extremamente carinhosa comigo, que tinha me tornado seu editor quando trabalhei na Editora Lê”.

Seu livro A estação das chuvas, reeditado pela Scriptum, começa no Parque Municipal e termina na Praça do Papa. O tema é um triângulo amoroso que acontece na cidade, entre as chuvas do verão. Um dos lados do triângulo é um historiador da cidade, que colhe anotações para um ensaio. Seu ponto de partida é o Parque, onde provisoriamente morou Aarão Reis, que projetava a cidade. O personagem é descendente de uma família do Curral del Rei, que teve seus habitantes expulsos de suas casas para a construção da nova capital de Minas. O texto passeia por algumas paisagens, como a Pampulha e a serra do Curral, mas se detém bastante no centro, especialmente na Avenida Afonso Pena, por tantos anos o eixo vibrante da cidade.

Lino tem outros dois romances pela Scriptum, que também apresentam suas tramas situadas no lugar onde nasceu e vive. Um deles, O bailarino holandês , se passa no Palácio das Artes, entre a livraria e o Grande Teatro. Na livraria, o vendedor vê um cliente manuseando um álbum de fotografias de Belo Horizonte. Disfarçadamente, ele abre outro exemplar enquanto observa o interesse do cliente por certas ruas e construções. Na medida em que imita a leitura do outro, vai imaginando um personagem para um livro que escreve mentalmente, seguindo o homem que lê à sua frente por um trajeto que os locais fotografados evocam. “Só não pode supor que aquele indivíduo tem uma vida própria, em nada parecida com a que foi fantasiada para ele e que, no recinto do teatro, enquanto uma companhia holandesa dança uma música de Tom Jobim, Insensatez, o leitor e o jovem livreiro cruzarão efetivamente seus caminhos”.

No outro livro, Os 31 dias, uma mulher passa um mês num sítio que lhe foi emprestado e se propõe a escrever um livro nesse período de tempo. Com um computador e a internet, cria um cenário de aparência real para que possa simular uma existência paralela. “É assim que, pelo anúncio de uma imobiliária, descobre um apartamento para alugar na Praça Marília de Dirceu (simpatiza com o nome do local, ao descobrir que o nome oficial do lugar é Praça João Alves, o que proporciona uma identidade dúbia para o próprio espaço), e instala-se virtualmente naquele lugar onde inventa um passado e depois um presente para si mesma. São fotos do passado e do presente de Belo Horizonte que compõem a insólita ambientação de um mudo ficcional em uma cidade concreta, ainda recente na idade, mas constantemente transformada pelo tempo”.

CITAÇÃO
(…)
Ao reconhecer que Belo Horizonte existe desde muito antes do dia 12 de dezembro de 1897, data oficial de sua inauguração, não quero agir como um curralense ressentido, expulso da festa. Pretendo escavar a origem de tudo, fazer uma espécie de arqueologia, homenagem muito pessoal a Anne-Marie, encontrando raízes subestimadas, fotografando a aura que se disfarça entre nossos prédios e nossas ruas. Por isso não considero seus primeiros habitantes nem os funcionários públicos transferidos de Ouro Preto para formar a elite e a camada média desta cidade, nem os pedreiros brasileiros que se juntaram aos italianos mais eficientes e também brigões, beberrões e anarquistas.
(…)
(Lino de Albergaria. A estação das chuvas, 2012).

CITAÇÃO
(…)
A casa da minha infância já posso desmanchar, retirá-la da Rua Antônio Aleixo e devolvê-la para seu lugar original, de onde me disponho a espiá-la, obliquamente, de minha varanda. A Praça Marília de Dirceu permanece despovoada, sem outra alma viva além da minha, mas naquela casa há uma luz acesa. Mesmo que venha da tela de uma televisão que alguém esqueceu ligada.
(…)
(Lino de Albergaria. Os 31 dias, 2015).

CITAÇÃO
(…)
Dentro da noite belo-horizontina, procuro o Palácio das Artes. Um navio branco ancorado no mar escuro do Parque Municipal. Ele não pode partir. Não quero ouvir a sirene anunciando sua despedida. Nem quero vê-lo, da calçada da avenida Afonso Pena, lentamente se afastar, tragado pelas árvores, transformadas numa sombra confusa, aquosa.
(…)
(Lino de Albergaria. Um bailarino holandês, 2015).

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Lino de Albergaria: sobre minha literatura e minha pessoa

Escrever literatura, eu descobri, não é tão diferente de escrever uma carta. Cada livro não passa de um pedaço de uma única carta, por mais longa que possa se tornar. Uma nova palavra acrescentada a esse texto, por enquanto sem fim, quer, mais do que tudo, sustentar a atenção do leitor. Ser lido é se saber escutado.

Acredito que, antes de mais nada, todo autor é um leitor. Sem dúvida, o leitor constrói o autor. Uma frase atribuída a Flaubert, “Madame Bovary, c’est moi”, cuja autenticidade até hoje se discute, com diversas tentativas de interpretação, para mim significaria, em última instância: “assim como minha personagem Emma Bovary, sou um leitor.”

Para alguns, Flaubert estaria se defendendo do processo a que foi submetido por atentar contra a moral e os bons costumes do século XIX. A grande dose de realismo que aplicou a seu romance teria feito com que muitos leitores acreditassem que falava de uma dama, adúltera, de existência real. No entanto, tudo era ficção, fruto da imaginação do autor. Mas Emma Bovary, leitora de obras românticas, teceu sua tragédia por acreditar em suas leituras.

A biografia de Flaubert mostra que ele também era um exagerado leitor, ainda no liceu de Rouen, nunca abandonando seus romances, companhia constante no dormitório. O vício, que emprestou a Emma, não o deixou nem quando escreveu “Bouvard e Pécuchet”. Para escrever esse livro, teria lido mais de mil volumes…

Nosso José de Alencar, em sua autobiografia “Como e porque sou romancista”, enfatiza a leitura tanto no ambiente escolar, evocando seu mestre Januário Mateus Ferreira, quanto nos serões de família, quando, à maneira de Flaubert e Emma Bovary, gravava no espírito um escasso repertório de romances.

Escreveu Alencar, relembrando a juventude: “Era eu quem lia para minha boa mãe não somente as cartas e os jornais, como os volumes de uma diminuta livraria romântica formada ao gosto do tempo (…). Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava-se à leitura e eu era chamado ao lugar de honra”. E ele se perguntava: “Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária que é entre todas a de minha predileção?” (ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas: Pontes, 1990).

Não fui nem sou um leitor tão compulsivo nem o gosto pelos livros prejudicou meu destino como aconteceu à pobre Bovary. Lembro-me que era analfabeto ainda, mas gostava de ouvir histórias, não só na voz humana como em gravações em discos coloridos, destinados às crianças de minha geração. Meu disco favorito contava a história de “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”. Ouvia muitas vezes a longa história, que ocupava dois discos. Mas não eram as peripécias do mercador oriental que me encantavam. Ficava imaginando a caverna de tesouros e a senha para que ela, magicamente, os revelasse: “Abre-te, sésamo!”.

Existia um cômodo em minha casa, ou de minha família, que era o escritório e a biblioteca de meu pai. Não tinha janelas e as paredes eram cheias de livros, que eu não podia ler porque ainda não sabia. Era escuro, uterino e misterioso como a caverna da história de Ali Babá. As figuras me espiavam das capas, o papel se entregava à exploração das minha mãos, quando, sozinho, entrava naquele cômodo vazio e que tanto me atraía. Talvez os livros me piscassem os olhos, fazendo de conta que eram os tesouros a forrar as paredes do lugar encantado que uma voz, para mim anônima, descrevia nos discos.

Um dia não me contive, peguei um lápis na escrivaninha, um lápis de duas pontas, uma azul e outra vermelha, abri um livro e rabisquei outro sobre ele. Tentava contar uma história por meio de desenhos, com bonecos humanos e bichos, em vermelho e azul. Estava, aos três anos, criando meu primeiro livro, minha versão pessoal de um palimpsesto. Minha mãe achou interessante, colocou a data. Trinta anos depois me daria de presente.

Nesse período, fui à escola, decifrei os códigos da leitura e da escrita, me tomei de paixão pela literatura, o que me fez estudar Letras e me levou à França para estudar editoração, pois queria trabalhar com livros, aprender a fabricá-los. Lá, entrei em contato com a literatura infantil, fiz estágios em revistas e em uma biblioteca para crianças. Na verdade, minha aproximação com o gênero foi por acaso, pois foram aqueles lugares e as pessoas que trabalhavam ali as únicas que me aceitaram como estagiário.

Na volta, exerci minha profissão de editor em São Paulo, no Rio de Janeiro e, finalmente, em Belo Horizonte, retornando à minha cidade natal, ao mesmo tempo em que publicava meus primeiros livros, dedicados aos jovens leitores.

Como autor de livros para crianças e jovens, passei a ser convidado para palestras e conversas com os leitores, no próprio ambiente da escola. Foi quando tive a chance de confrontar meus leitores. Descobri que não escrevo para mim mesmo, nem por um impulso incontrolável. Escrevo para pessoas de carne e osso, que podem conversar comigo e se fazer ouvir. Muitos autores, nessa área, não gostam de visitar escolas. Eu sempre tenho uma grande curiosidade pelo que pode se passar ali e, confesso, um gosto por esses encontros. Aprendi a levar em conta a opinião de alguns leitores. Às vezes, expressam uma sabedoria que não encontrei nas minhas leituras e me vejo a incorporá-las em meus livros e no meu modo de escrever.

Assim, as escolas passaram a ser cenário de minhas histórias, quando adoto o realismo em minha literatura. Crio personagens próximos de meus leitores, que passam boa parte do seu tempo na escola. Também gosto de representar a família: pais, irmãos, avós, que contracenam com colegas e professores de meus heróis, de preferência pré-adolescentes. Ali, na escola ou na própria casa, eles atuam e se relacionam com o outro. Vivem conflitos, descobrem a vida, com obstáculos e sofrimentos ou alegria e esperança. Para as crianças menores, faço questão de um final feliz. Elas mesmas cobram esse final, que a maior parte dos contos de fadas incorporou. Final feliz é promessa de futuro, é esperança e confiança em nossos projetos na vida. A esperança o justifica.

Mas também crio histórias em um tempo fora do real, como o tempo suspenso dos contos de fadas. Aí minha imaginação se solta, perseguindo imagens que o inconsciente sugere. Essas histórias fantásticas, cheias de peripécias, são meu tributo ao meu primeiro herói, Ali Babá.

De um certo tempo para cá, entendi que escrever para um público jovem tem algo parecido com o ato de escrever uma carta: nas cartas a gente tem em mente nosso interlocutor e, para chamar sua atenção, nos aproximamos de sua linguagem e de seu interesse. Não é que o leitor deve dar, sozinho, o tom do jogo, mas a gente se torna mais motivado a falar daquilo que quer, se já sabe como corresponder à expectativa do destinatário. E não se trata de manipulação, pois incorporar o que se ouviu dele na nossa maneira de escrever torna-se, de alguma maneira, uma espécie de diálogo.

Também gosto de ler meus leitores. Não só os que me descobrem e me escrevem pessoalmente, mas desde que comecei a ter acesso à Internet passei a descobrir que há pessoas que falam de mim e do que escrevo, sobretudo, em seus diários eletrônicos, seus blogs. Freqüentemente tento me comunicar com eles, mas nem sempre faço isso. Há quem não acredita que o autor do livro que comentaram esteja se manifestando pessoalmente (ou virtualmente). Aliás, uma vez, alguém com meu nome escrevia para o autor do blog. Como muitos escritores dialogavam bastante com esse jovem, achei que eu e os outros já éramos personagens criados por ele próprio. Não me importei de ter virado um outro. Afinal, tudo é ficção, tudo é narrativa, quando se torna mediado pela escrita.

Então, como posso ser meus leitores, eles podem ser, de certa forma, eu mesmo. Enfim, todos somos Madame Bovary, fingindo, como Pessoa, ser dor a dor que deveras sentimos. Nosso dilema, também nosso prazer comum, é que pertencemos todos à mesma classe dos leitores!